A febre do mercado independente de desenvolvimento de games e por que o mercado brasileiro está perdendo grandes oportunidades
Por Erick Firezac
No dia 24 de abril de 2025, o estúdio francês Sandfall Interactive lançou o jogo "Clair Obscur: Expedition 33". Idealizado pelo diretor Guillaume Broche, o título vendeu mais de 1 milhão de cópias nos três primeiros dias, sendo aclamado como um dos maiores lançamentos do ano. Além do sucesso comercial, o jogo chama atenção pela metodologia de desenvolvimento adotada, considerada pouco convencional até poucos anos atrás, mas que hoje desponta como tendência crescente na indústria.
Em um mercado cada vez mais populoso e competitivo, onde grandes títulos são geralmente produzidos por centenas — às vezes milhares — de desenvolvedores experientes, "Clair Obscur: Expedition 33" surpreende por ter sido desenvolvido por uma equipe modesta, composta por cerca de 30 profissionais, a maioria novata no setor. O direcionamento criativo e técnico do projeto foi extremamente específico, fugindo dos modelos tradicionais e vícios da indústria. Para isso, o foco deixou de estar na formação de equipes voltadas ao ápice da tecnologia gráfica e mecânica — com modelos ultrarrealistas milionários e captura de movimento digna do cinema — para se concentrar em jogos de escopo contido, que abraçam limitações gráficas em seu estilo artístico e colocam todo o peso na experiência entregue ao usuário, seja por meio de uma história envolvente e bem desenvolvida, seja por mecânicas inovadoras que buscam colocar o jogador no controle constante do coração do jogo.
Até poucos anos atrás, essa linha de pensamento era associada a estúdios pequenos e independentes, moldada por limitações técnicas e/ou financeiras, com equipes que raramente ultrapassavam uma ou duas dezenas de pessoas. Mais do que uma estratégia adequada a essas restrições, tais soluções surgiam de quem não podia oferecer mais do que uma ideia ou um sonho — algo que tornava o mercado independente fascinante, mas ao mesmo tempo limitado. Assim, quando vemos um estúdio como a Sandfall adotando esse tipo de estratégia, não podemos deixar de nos perguntar: qual é o objetivo de uma companhia para a qual dinheiro, conhecimento técnico e contatos não são obstáculos quando tal estratégia é adotada?
Essa escolha estratégica não foi fruto do acaso nem de limitações orçamentárias típicas de estúdios independentes. Guillaume Broche, fundador da Sandfall Interactive, ocupou cargos de liderança na gigante francesa Ubisoft, tendo atuado em projetos como "Ghost Recon Breakpoint" e "The Division 2". Além da bagagem profissional, Broche é filho de Richard Broche, magnata francês e sócio da empresa de investimentos MYRTE INVEST, o que garantiu ao estúdio os recursos necessários para bancar os €2,7 milhões estimados para o pontapé inicial no desenvolvimento do jogo e do estúdio.
À primeira vista, o sucesso da Sandfall Interactive pode parecer um caso isolado, mas sua metodologia ecoa um movimento já percebido entre grandes nomes do setor. Hideo Kojima, criador da franquia "Metal Gear" e uma das figuras mais influentes da indústria, elogiou publicamente o jogo em sua conta na rede X (antigo Twitter) e afirmou que a abordagem adotada pelo estúdio francês é semelhante à usada em sua própria empresa, a Kojima Productions. Para Kojima, essa abordagem oferece maior liberdade criativa, fortalece o vínculo com o público e permite um termômetro mais preciso do processo de desenvolvimento.
Embora possa soar como uma visão romântica de um artista consagrado, os números do mercado corroboram com essa perspectiva. A cada ano o número de jogadores cresce, ao passo que os grandes jogos — os chamados "AAA" — vêm enfrentando fracassos comerciais frequentes.
Em 2024, a Fireworks Studio, subsidiária da PlayStation, foi fechada após o fracasso de "Concord", jogo online de grande escopo que gerou um prejuízo de US$400 milhões. A Crystal Dynamics, responsável por franquias como "Tomb Raider" e "Deus Ex", foi vendida pela Square Enix em 2022 após o fracasso de "Marvel's Avengers" — jogo licenciado por uma das marcas mais valiosas da Disney, lançado em 2020 e que gerou um prejuízo de ¥6,5 bilhões.
A própria Ubisoft enfrentou dificuldades financeiras após o lançamento de "Star Wars Outlaws" em 2024, outra marca licenciada pela Disney. O desempenho apenas se estabilizou com o lançamento de "Assassin’s Creed Shadows", embora este tenha evidenciado sinais de saturação por parte do público.
Outro exemplo marcante foi a Microsoft, que entre 2023 e 2024 adquiriu os estúdios Bethesda e Activision Blizzard. Surpreendentemente, diversos estúdios adquiridos no acordo foram fechados e suas equipes reduzidas drasticamente sob a justificativa de controle de custos. A atitude gerou questionamentos: por que investir bilhões na aquisição de empresas para, em seguida, desmantelá-las?
Detentora do serviço de assinatura Game Pass, a Microsoft parece ter captado a mudança no comportamento do consumidor. Os jogadores estão cada vez mais cansados de produções infladas, burocráticas e com preços exorbitantes que prometem inovações, mas entregam experiências vazias. A aquisição das propriedades intelectuais serviu para fortalecer o catálogo do serviço, mas a manutenção de grandes equipes e ciclos de produção extensos não parece mais valer o investimento frente à demanda crescente por experiências criativas e acessíveis.
Guillaume Broche relatou que seu desejo de criar seus próprios jogos surgiu da frustração com as limitações impostas pela Ubisoft, mesmo em cargos de liderança. As exigências tecnológicas e criativas da empresa o impediam de explorar novas IPs, restringindo-o a franquias consolidadas como "Assassin’s Creed". Em suas palavras: "lá dentro, talvez só pudesse criar o jogo dos meus sonhos em 25 anos".
Mais do que uma epifania pessoal, a visão de Broche reflete uma transformação em curso no setor, reconhecida por nomes como Hideo Kojima.
Em 2023, a belga Larian Studios lançou "Baldur's Gate 3", baseado no universo de Dungeons & Dragons. O título, que gerou US$270 milhões em receita, foi desenvolvido inicialmente por uma equipe de apenas 50 pessoas, que posteriormente foi ampliada para 450 integrantes após o sucesso. O foco da Larian em detalhe e narrativa somado a sua consideração por sua comunidade conquistou crítica e público, que acompanha entusiasmados cada atualização que o jogo ainda recebe.
Outros exemplos fortalecem essa tendência. "Split Fiction", lançado em 2025 pelo estúdio sueco Hazelight Studios (com 65 funcionários), vendeu 4 milhões de cópias. "Returnal", da finlandesa Housemarque, iniciou com 80 funcionários e chegou a 110 no final do desenvolvimento, vendendo cerca de 1 milhão de cópias em seu primeiro ano. A Remedy Entertainment, também da Finlândia, com 350 funcionários, lançou "Alan Wake 2", sequência de sua franquia mais aclamada, em 2023, alcançando 2 milhões de cópias vendidas. Um sucesso de vendas e recepção crítica com mais de 6 milhões de vendas, "Cuphead" — produzido pelo Studio MDHR — que iniciou sua produção em 2010 e apenas foi finalizado em 2017, com uma equipe que crescia de 2 desenvolvedores (os irmãos Chad e Jared Moldenhauer) para pouco acima de 20.
Esses títulos, assim como "Clair Obscur: Expedition 33", mostram três pontos claros: o público está cansado de megaproduções e busca experiências mais contidas; deseja novas tendências e narrativas; e se interessa cada vez mais por produções fora do eixo norte-americano, com suas fórmulas recorrentes e estruturas saturadas.
Essa mudança deixou de ser especulativa e se tornou evidente nas redes sociais e entre influenciadores. Muitos usuários expressam insatisfação com os preços abusivos dos lançamentos — cada vez mais frequentemente entre US$70 e US$80 — e com práticas de mercado inflacionadas desde a pandemia. O público passou a valorizar jogos independentes, com propostas originais, criados por desenvolvedores próximos de sua comunidade, vendendo a preços mais justos. O resultado tem sido uma espécie de "reeducação" do consumidor, que agora volta sua atenção para o que quebra o convencional.
Entre todas as novas produções internacionais que surgem no cenário atual, uma surpresa bem-vinda se dá com a constatação cada vez mais evidente de como essa nova percepção do público beneficia diretamente o mercado brasileiro. Mesmo carecendo de um polo estruturado, o Brasil sempre demonstrou forte consumo e interesse pela cultura artística e de entretenimento, sendo uma vanguarda e força transformadora nas artes musicais e visuais por décadas; isto transborda nas novas mídias de expressão artística, onde se vê incluso o meio digital voltado aos jogos — desde os tempos da reserva de mercado, quando produtos pirateados ou criados por engenharia reversa eram a única opção acessível, e nossas marcas oficiais disputavam entre si para ver qual delas criava o bootleg mais atrativo.
Para consumir e desenvolver esses raros pedaços de mídia digital, era necessário ao brasileiro recorrer à criatividade — a mesma criatividade utilizada paralelamente no cinema nacional, já que a “tela de prata” possui um potencial narrativo e dialético, metamorfoseando o público com a arte e sendo transformado pelos que o consomem. Estas similaridades importantes são compartilhadas com os games e na qual nosso repertório já foi bastante rico. Mesmo em tempos de censura governamental, como ocorreu durante a reserva de mercado, o cinema nacional manteve-se em desenvolvimento: muitos cineastas trabalhavam de forma independente, idealizando seus projetos como podiam e sendo reconhecidos, com o tempo, por sua visão artística — muitas vezes mundialmente. Essa criatividade é tão predominante no brasileiro e nas artes narrativas que quase nos levou ao Oscar em 1998 com o filme "Central do Brasil", de Walter Salles — e agora, em 2025, finalmente nos trouxe a estatueta com "Ainda Estou Aqui", também de Salles.
Fica claro, portanto, que a criatividade para contar histórias sempre esteve presente em nosso mercado e em nosso povo. Quando essa criatividade se encontrou com o interesse popular pelo que se podia criar nas plataformas digitais, passou a emergir uma mão de obra apaixonada, que viria a se intensificar com o passar dos anos. Já em 1983, Ricardo Degiovani criou "Amazônia", o primeiro jogo 100% brasileiro. Com a distribuição limitada pela simplicidade e pelo alto custo das mídias da época, o código do jogo foi publicado na revista MicroSistemas para que os leitores digitassem manualmente no prompt de comando de seus computadores, compilando-o por conta própria — uma prática impensável hoje, mas que demonstra a perseverança dos pioneiros.
Com o tempo, produções independentes foram ganhando força. Em 1998, o estúdio Perceptum Informática Ltda lançou "Incidente em Varginha", baseado nos famosos supostos avistamentos de OVNIs em Minas Gerais, e que obteve visibilidade internacional no mercado independente mainstream. Ainda assim, desafios técnicos, burocráticos e econômicos dificultaram o estabelecimento de uma indústria local sólida, levando muitos profissionais ao êxodo em busca de oportunidades no exterior.
Essa realidade começou a mudar no fim dos anos 2000, com a popularização da internet e o acesso facilitado a motores gráficos como Unreal, Unity, Godot e Blender. A partir daí, o Brasil passou a figurar direta e indiretamente em projetos internacionais, como em "Celeste" (2018), desenvolvido pelo estúdio canadense Matt Makes Games, onde o estúdio brasileiro MiniBoss foi responsável pelas animações dos personagens e cenários. O título vendeu mais de 500 mil cópias.
Outros exemplos incluem "Fobia – St. Dinfna Hotel" (2022), do Pulsatrix Studio, fundado em São Paulo com 23 desenvolvedores. O jogo vendeu algo em torno de 730 mil cópias segundo o site Gamalytic e figurou entre os mais vendidos da loja online Steam em seu lançamento, com alcance internacional e apoio de influenciadores.
O impulso destes desenvolvedores independentes se intensificou após a pandemia, que, apesar de sufocante, trouxe oportunidades para novos projetos figurarem no mercado. O surgimento pós-lockdown de eventos como o festival Jogatório, da Firma de Games, e a versão latino-americana da Gamescom consolidaram-se como um exemplo de como a atenção do mercado está reconhecendo o crescimento brasileiro e suas oportunidades emergentes.
Hoje, com a valorização internacional de jogos que fogem das fórmulas norte-americanas, o Brasil colhe frutos com best-sellers como "Mullet Madjack" (2024), da Hammer95 Studios, que vendeu cerca de 300 mil cópias; "Enigma do Medo" (2024), desenvolvido pelo youtuber Cellbit em parceria com o estúdio Dumativa, arrecadando mais de R$4 milhões apenas na fase de financiamento; e "9 Kings" (2025), criado pelo youtuber Andrezitos, que vendeu aproximadamente 300 mil cópias em apenas dois meses e hoje já ultrapassou a marca de mais de 800 mil cópias vendidas.
Analisando essa trajetória, é evidente que o mercado independente de desenvolvimento de games — tanto no Brasil quanto no exterior — passa por um momento de revisão de expectativas e práticas. O cenário abre espaço para novos talentos e reforça a possibilidade de países, como o Brasil, consolidarem um polo criativo forte, capaz de aproveitar a atenção que o mundo começa a dedicar aos desenvolvedores menores. Oportunidades existem — é preciso apenas que portas se abram para que esses projetos sejam devidamente apoiados e financiados.
Erick Kessar Rego Barros ( Erick Firezac ) é Design gráfico e Digital pela faculdade IED, com especialização em Game Design e atualmente cursando Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Mackenzie com foco em digitalização de espaços reais para ambientes digitais interativos. Programador Web da super intendência educacional pelo colégio Mackenzie; fundador e Game Designer da Half-Mask Studios. Sua experiência na Europa através do projeto em desenvolvimento com a instituição histórica da cidade de Magdeburg, na Alemanha, para digitalização de espaços históricos para o ambiente de jogos, parceria e contato com o polo de desenvolvimento de jogos na região de Bruxelas, na Bélgica, experiência trabalhando com o setor de logística, retail e Merchandising da unidade "Hard Rock Cafe" de Berlin, também na Alemanha.
Referencias:
EMBOAVA, Valdecir. Equipe responsável por Clair Obscur foi montada com métodos pouco convencionais de recrutamento; Entenda!. TecMundo, 5 maio 2025. Disponível em:https://www.tecmundo.com.br/voxel/501314-equipe-responsavel-por-clair-obscur-foi-montada-com-metodos-pouco-convencionais-de-recrutamento-entenda.htm. Acesso em: 25 jun. 2025.
GUERRA, Rodrigo. Square Enix vende Crystal Dynamics, de Tomb Raider, para Embracer Group. TechTudo, 2 maio 2022. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2022/05/square-enix-vende-crystal-dynamics-de-tomb-raider-para-embracer-group.ghtml. Acesso em: 25 jun. 2025.
GUGELMIN, Felipe. Concord custou US$ 200 milhões e foi feito por mais de 150 pessoas. Adrenaline, 30 out. 2024. Disponível em:https://www.adrenaline.com.br/games/concord-custou-us-200-milhoes-e-foi-feito-por-mais-de-150-pessoas/. Acesso em: 25 jun. 2025.